Duas capitais brasileiras registraram um aumento nos casos de hepatite A durante os primeiros meses de 2025: São Paulo e Belo Horizonte.
De acordo com dados do Boletim Epidemiológico da Secretaria Municipal da Saúde, a capital paulista apresentou uma alta de 90,11% nas ocorrências, quando comparadas aos casos confirmados entre janeiro e abril de 2024, e o mesmo período de 2025.
Em Belo Horizonte, esse aumento foi de 256%, também de janeiro a abril, em relação ao ano anterior. Ainda não há informações precisas sobre as fontes de contágio, porém, sabe-se que houve um crescimento expressivo no número de casos, especialmente entre indivíduos do sexo masculino, entre 20 e 44 anos.
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Para entender melhor a doença, formas de contágio e tratamento, o portal da TV Cultura entrevistou a Dra. Raquel Scherer de Fraga, hepatologista com pós-doutorado no Departamento de Gastroenterologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), e membro titular da Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH) e da European Association for the Study of the Liver (EASL).
O que é a hepatite?
A hepatite é uma inflamação no fígado, podendo ter diversas causas. É classificada em cinco tipos virais (A, B, C, D e E), que recebem a denominação com base na ordem de descoberta dos respectivos vírus.
“A hepatite A é uma infecção viral cuja principal forma de transmissão é enteral ou fecal-oral, transmitida por água e alimentos contaminados, ou pelo compartilhamento de objetos, como talheres e copos, entre pessoas infectadas e não infectadas. Está basicamente associada a condições sanitárias”, explica a médica.
A doença geralmente se manifesta em surtos, e o Brasil é considerado um país de endemicidade intermediária — ou seja, a doença está presente na população de forma contínua, mas sem ampla disseminação.
“Em países de alta endemicidade, mais de 90% da população já contraiu hepatite A até os dez anos de idade, o que reduz a ocorrência de sintomas na vida adulta", afirma Raquel Scherer.
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Sintomas
A especialista esclarece que, na infância, cerca de 90% dos casos de hepatite são assintomáticos. Às vezes, a infecção pode ser confundida com uma virose ou gastroenterite. Já em adultos, os sintomas são mais frequentes.
Entre os sinais estão: fadiga, febre, mal-estar, dores musculares, enjoo, vômitos e alterações intestinais. Os primeiros sintomas costumam surgir entre 15 e 50 dias após a infecção e podem durar cerca de dois meses. Uma das manifestações mais conhecidas é a icterícia — popularmente chamada de “amarelão” — que deixa os olhos amarelados.
Seu diagnóstico é feito por exame de sangue que detecta anticorpos específicos (anti-HAV IgM) e pode ser realizado em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), consultório médico ou hospital, para confirmar se há hepatite aguda.
Tratamento e prevenção
A doença não possui tratamento específico. Sua principal forma de prevenção é a vacinação, que é segura. As vacinas contra hepatite A são altamente eficazes, com taxas de proteção entre 95% e 100%. No Brasil, o imunizante foi introduzido em 2014 para crianças de até 4 anos, 11 meses e 29 dias, além de pessoas vivendo com HIV ou hepatites B e C.
Por estar frequentemente relacionada ao consumo de água e alimentos contaminados e à falta de saneamento básico, medidas de higiene são fundamentais: lavar as mãos regularmente, higienizar alimentos com água tratada, fervida ou clorada, cozinhar bem os alimentos, lavar adequadamente utensílios domésticos e evitar contato com enchentes, esgoto a céu aberto ou chafarizes contaminados.
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Aumento dos casos
A médica explica que, durante as Olimpíadas e Paralimpíadas do Rio de Janeiro em 2016, o Brasil recebeu cerca de 541 mil turistas internacionais. Naquele período, houve um surto de hepatite A, o que pode ter contribuído para uma ampla disseminação da doença entre 2016 e 2017.
“Dados do Boletim Epidemiológico mostram que, em 2016, foram registrados 49 casos na cidade de São Paulo. Em 2017, esse número saltou para 710. No Rio de Janeiro, os números também aumentaram: foram 21 casos em 2016 e 404 em 2018.”
Esse aumento acendeu um alerta para os especialistas. Dos 710 casos registrados em São Paulo, 537 foram em indivíduos do sexo masculino. A transmissão sexual se destacou como uma das principais formas de contágio entre adultos.
“Até esses surtos de 2016/2017, a transmissão sexual não era reconhecida como uma via importante de contágio da hepatite A, que era mais associada ao consumo de alimentos contaminados ou ao compartilhamento de objetos. A partir desse momento, ou-se a considerar a hepatite A também como uma IST (infecção sexualmente transmissível).”
Segundo a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, em 2017, 80% dos casos foram registrados em homens, sendo 63% deles entre 18 e 39 anos. Em 2025, até o período avaliado, o perfil epidemiológico se manteve semelhante: 71,7% dos casos em homens, e 67,5% em pessoas de 18 a 39 anos.
“O que temos visto é que, geralmente, são homens que fazem sexo com homens e praticam sexo oral-anal ou digital-anal. Essas práticas, com contato oral-anal, também são formas de transmissão”, ressalta.
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Surto mundial
O artigo “Hepatitis A outbreak disproportionately affecting men who have sex with men (MSM) in the European Union and European Economic Area”, publicado em 2018, analisou casos de hepatite A na União Europeia entre junho de 2016 e maio de 2017. Foram aproximadamente 1.400 casos registrados, dos quais 93% eram em homens, e 84% em homens que fazem sexo com homens.
Na América Latina, o Chile notificou 706 casos a partir de maio de 2017. Já nos Estados Unidos, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) registraram cerca de 3.336 casos em 2017. Entre 2011 e 2017, houve aumento de 140% nos casos entre usuários de drogas, pessoas em situação de rua e homens que fazem sexo com homens.
Vacinação
Ainda não há informações conclusivas sobre a principal fonte de contágio atual, mas, diante do cenário preocupante e da mudança no perfil epidemiológico, o Ministério da Saúde ampliou, em maio deste ano, a vacinação para novos grupos prioritários — como usuários de PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), antes sexuais e domiciliares de casos confirmados.
“As pessoas que usam PrEP para evitar o HIV geralmente não utilizam preservativos e têm práticas como sexo oral-anal ou digital-anal. Essas práticas aumentam o risco de infecção”, explica a hepatologista.
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O uso de brinquedos sexuais também é uma possível fonte de transmissão. Observou-se que usuários de PrEP apresentam maior predisposição à hepatite A, e, nesses surtos, tendem a ter evolução clínica mais grave.
“Hoje, o Brasil incluiu os usuários de PrEP entre os grupos a serem vacinados. Também são vacinados pacientes com doenças hepáticas — como cirrose, hepatite B, hepatite C — além de crianças”, destaca.
Ela alerta ainda que, se houver alguém com hepatite A na família, os demais antes devem ser vacinados até duas semanas após o contato, como medida preventiva.
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